Na panorâmica vista daqui de cima, os telhados lá embaixo parecem estar sobrepostos, como em um jogo de encaixes puídos. Telhas marrons, vermelhas, chapas de zinco, piche sobre as lajes. As cabeças das construções estão desgastadas pelo tempo, resultado da resiliência às chuvas torrenciais dos verões. Nos aproximamos para ver, entre as fileiras de casas desalinhadas, os vãos para o asfalto.
Ali está ela:
imensa, dona do chão.
Uma ação que ainda não existe e cuja presença se impõe sorrateiramente ao solo,
espraiando-se por entre as verticalidades e inclinações das construções.
Naquele amontoado de cores, localizamos Bas e direcionamo-nos para o seu rosto. Tem um olhar negro que observa atentamente aquela maravilhosa extensão. Seus olhos caem sobre a forma fantasma como duas águias, dois saltos no vazio, duas rajadas de gozo. É visível o seu entorpecimento em sentimentos difusos.
Ele agarra o encosto de uma cadeira, que traz apoiada nas costas. Agora, girando-a para o lado direito, coloca-a sobre a cumeeira do telhado. Está acomodando-se com gosto sobre ela, pipocando levemente as nádegas no assento.
Se deslizarmos suavemente para a esquerda, próximo a Bas, perceberemos que um intruso se equilibra ali, cujas patas ferradas não arriscam qualquer movimento. Surpreendente não o termos notado por primeiro; sua postura imponente torna a paisagem esquisita, e sua expressão serena não reflete a teimosia com que o estranho encara a vida. Com o olho esquerdo, grande e bem delineado, a pálpebra aberta e relaxada, adornada por fios grossos, o intruso observa Bas de maneira inoportuna. Bas, por sua vez, não parece incomodado, mas está ciente de que, apesar da aparente tranquilidade, o bicho quer falar-lhe, ou berrar qualquer exclamação.
Retornamos a fechar em Bas. Ajustado à cadeira, ele mantém a boca cerrada e suspira pelo nariz. Pensa em seu desejo, sabemos. Já a imensidão parece ignorar o estranho no telhado e pede a atenção de Bas, pois recusa-se a ir ao seu encontro nessa dureza atmosférica. Não assim, quase podemos ouvi-la sussurrar, vá mudar o trejeito, desanuviar, centrar-se, lamber-me. Pensamos por ele que, em resposta, ela certamente o lançará feito uma pedra pesada que ganha velocidade, voa longe e se espatifa em mil pedacinhos cintilantes.
Bas, muito endurecido, embora calmo, resolveu ignorar o intruso e agora está lambendo os lábios; assim, tira deles e de si a secura. Passa as mãos nas pernas, começando pelas coxas, perto da virilha. Desce até os joelhos.
Rápido.
Agora tenta ser vagaroso;
um pouco mais suave.
No toque doce, um ou outro dedo fica suspenso no caminho, até reencontrar, sem pressa, a coxa.
Estará tentando iniciar uma imagem do transe que gostaria de entrar? Se repararmos bem, parece febril de vontades, embora seu corpo ainda não corresponda.
Está deslizando um de seus pés à frente. O salto do sapato solavanca pequeno ao encontrar o desnível das telhas. Com a boca fechada, o gogó deu uma leve sacudida, deve ter engolido saliva. Ele se movimenta com um ritmo um pouco mais sutil.
Penetramos em Bas, quentinho e macio, e vemos as imagens que ele está produzindo mentalmente: fotografias confusas da posição atual de seu corpo. Sua boca, neste momento, está levemente entreaberta e muda, secando.
De dentro, sentimos com ele a expectativa aguçada da espera. A pele um pouco escamada, os pelinhos finos ouriçados. Ele quer imobilizar o universo, sente que poderia. Ao mesmo tempo que teme ser interrompido por uma folha que chegue com o vento em sua cara, ou que sua respiração, ou um gesto qualquer quebre o feitiço e o faça cair novamente na distância e no vácuo das palavras. Começou agora mesmo a acariciar a barriga. Matém os olhos fechados. Vai movendo-se conforme o seu próprio corpo pede, ainda que tanto ele quanto nós saibamos que não há comando certo. E relaxamos. Esse é um princípio gostoso. Sente essa oscilação? É a excitação subindo pela garganta de Bas.
Roça na cadeira. Madeira firme.
Roça,
roça,
de novo controle sem controle.
Roça,
roça,
roça,
o corpo teso faz o movimento de esfregar de trás pra frente, de frente pra trás. Mãos cariciosas nas pernas. Uma sensação de unidade. Eu em mim mesmo. Sua garganta vibrando, o sangue latejando surdamente nos pulsos, no pau, na testa. Podemos sentir tudo.
Adiante, ela, imensa, impávida.
Bas segue de olhos fechados, com a boca um pouco mais entreaberta, soltando ar por ali. Ele e nós, todos o vemos de fora e de dentro, e sentimos algo sem nome. Eu e eu mesmo.
Ela, gigante, observa. Visão que o atravessa.
Bas, com bicos duros, roça roça roça com a boca ainda mais entreaberta, seca seca. O corpo treme e ele está como um bom cubista, de frente e de lado. Gira na cadeira sem perceber. Mais uma vez essa sensação saborosa que ele não entende, embora sim.
Roça roça roça roça roça roça roça rápido,
e começou a escorrer um fio de baba.
Roça roça mais rápido,
aquela sensação sem nome, maravilhosa, esperada. A baba desavisada melhora tudo.
É gosto, é sabor, é delícia.
Eu em mim.
Em frações, um pouco a perna repica sem parar, exausta. Essa imagem congela em sua mente e a atenção muda para a cena do seu corpo entortado. Bas não pode mexer-se, a cabeça empinada para o alto, olhos arregalados como se agora mesmo houvesse tido uma revelação profana; só gemia.
Uma vontade inesperada de mijar.
O corpo tem movimentos involuntários, um pouco pontiagudos e cômicos.
Seu beiço inferior, de lábios tão finos, vemos daqui gigante e salivando.
Agora, a boca arregaçada parece dor.
Quer parir o desejo.
1 hora.
Ela, beleza terrível, o encara.
Baixinho, ouve-se um gemido fugidio. A sensação pertence a Bas e ele precisa mantê-la desperta, ainda que sem controlá-la. A cabeça expande grande, uma comichão na nuca. Aaaaaaii...
Uma delícia. Sobe tudo, formiga tudo, as pernas empelotadas pelo arrepio.
E ela, lá, observando.
Cruel, deliciosa.
Às vezes Bas enruga o rosto e algumas lágrimas querem escorrer. Parece mais um choro de novela, mas ele sente, não sabe o quê, uma delícia de choro que vem sem vir. É mais uma careta feia, uma feição torcida com uma nota grotesca.
Tudo é muito frágil. Bas pode tentar de fato chorar, mas, aí, acabou. Se segurar, acabou também. É um entre muito pequeno, muito delicado, que, no meio do entorpecimento, é preciso manter a fina linha. Choro vem sem vir. Ninguém sabe, apenas eu. Ai, a feiura da delícia!
Parece choro engasgado.
2 horas.
Ela, implacável.
Desejante? Não importa, te devoro e me devoro igual! Roça rápido, engasgado, olhar oblíquo, vesgo. Roça roça. Ela permanece imperturbável.
A baba dá uma pingadinha.
De golpe, ele sente o leve toque dela. Sorri fino de canto de boca.
Safaa a a A cadeira empina para o lado.
Desequilibra leve, segue sentado, -30º, corpo endurecido, embora maleável. Na aresta das duas patas laterais que mantém a cadeira sobre o telhado, um fio de estabilidade. Todos os nossos corações acelerados.
Se não cobiçasse tanto a ruína, Bas poderia até ser equilibrista de circo. Mas não, não quer desendurecer porque pode parar de sentir tudo, a qualquer momento, caso erre um movimento, projete um pensamento.
Ela puxa mais um pouquinho, encarando-o, absurdamente sedutora.
Bas, teso, escorrega da cadeira. O corpo rola rápido rápido rápido vai vai vai soluçando telhado abaixo a cadeira vem atropelando vai pegar na cabeça vem vem vem vem vem está chegando na calha
Susto! a gravidade quase para AH!
Ele esquece que precisa cuidar os movimentos e empurra com as mãos o telhado. Reflexo primário. É isso que vai fazer acontecer, o não saber, sem pensar, apenas o agir. Se esgueira sobre o seu desejo (a baba laceou a bochecha) e o agarra forte contra si. Seu corpo eletrificado e ofegante, geme geme geme geme baixinho. Sabe a caricia que sente. Cuspe grosso entalado que não deixa passar o ar.
Um de seus sapatos vai voando, lá vai, desagarrou e saiu estupidamente pelo ar.
Bas é puxado.
Amarga,
terna,
imoral,
selvagem,
deliciosa,
ridícula queda.
O tempo contava nos dedos 24 segundos.