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Ana cariño, 
aprendi que, para me aproximar de uma obra, preciso emprestar minha ferida e minha dor ao autor. Pois, quando observo o que você, Ana, pôs no mundo, sinto que meu corpo começa a se rasgar.
Parece que, desde a juventude, você não pôde (ou não quis) legendar seus gestos nesta realidade atrofiada na qual vivemos. Ao contrário, com o não pensar da sua mão, você riscou e ateou fogo à terra árida, oferecendo ao mundo, pela imagem, o seu gesto primário. Marcou justamente aquilo que há muito tentam, mas que jamais poderá ser demarcado. Não é questão de posse, e sim de passagem. Estou tentando aprender que apenas o nada nos pertence. Disso, você já sabia, não?
Porém, você acreditaria se eu lhe contasse que a terra segue pontilhada e o planeta desenhado feito a carne de um boi pronto para o abate? Lugares ainda são nomeados, reivindicados, tomados e aniquilados. Esforço-me para não me render ao pensamento de que nunca deixaremos de ser cafonas. Por isso, exercito a imaginação, formulo mentalmente imagens do que poderia ser.
Hoje, imaginei você.

A pequena Ana, devoradora de águias gigantes. 
Ali à frente, está você, parada e de boca escancarada, enquanto toda a sua vida passa, ladeando o seu corpo, num tempo apressado. Sua garganta não tem campainha. É um poço escuro, para onde são jogados os grandes pássaros negros. Você sequer se dá ao trabalho de depenar e cozinhar, nem mesmo joga uma pitada de sal.
Não, 
a sua bocarra aguarda o arremesso adentro das aves sisudas, como se fossem pipoconas queimadas.
Croc croc croc croc...
Nessa imagem, enquanto você faz a sua refeição, eu seguro firme o meu binóculo histórico e observo os homens à sua volta. Eles retorcem os pescoços, enojados com a não violência do sangue que jorra enquanto você mastiga. 
Como?! — indagam eles, aterrorizados com a sua sanidade.

Hahahahaha! 
Bom, talvez você não achasse graça; parece-me que você tinha urgência.
Mas, ainda hoje, posso ver você vomitando os pedaços daqueles corpos azedos. 
Antes de me sentar e escrever esta carta, vi algumas penas voando e também ossos repicando e fundindo-se ao solo. Inclusive, vísceras espirraram em meu rosto. Mas você
você permaneceu inteira, minha cara Ana.

Com amor,
Fernanda Pujol
Abril de 2025


Agradecimentos:
Juliano Garcia Pessanha

Carta para Mendieta, 2025, 1’56’.

 

A mostra Cartas à Mendieta celebra o legado da artista cubano-americana Ana Mendieta, reunindo artistas latino-americanas em vídeo-cartas que dialogam com sua obra.

Por meio de performances, textos e imagens, a exposição revive temas como identidade, exílio e resistência, honrando sua memória. A morte trágica de Mendieta, em 1985, ecoa como símbolo das lutas das mulheres na arte.

Essa homenagem coletiva une passado e presente, fortalecendo vozes femininas na América Latina.

Curadoria:
Guadalupe Carrizo
Manuela Leite
Raquel Rodrigues

Realização: Fernanda Pujol

Participações em mostras:

2025

Cartas à Mendieta, curadoria Guadalupe CarrizoManuela LeiteRaquel Rodrigue - XLIV Festival del Caribe, Fiesta del Fuego, Santiago de Cuba

Cartas à Mendieta, curadoria Guadalupe CarrizoManuela LeiteRaquel Rodrigues - CCJF - Centro Cultural da Justiça Federal Rio de Janeiro, Brasil

© 2020 FERNANDA PUJOL

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